Sonhos e música. Assunto para freudianos, kardecistas e... sonhadores

De uma forma ou de outra, o sonho é um elemento poderoso de criação artística

Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma roma, um segundo antes de despertar, 1944.Eu sonho bastante. Metafórica, física e metafisicamente. O que poderia levar esta conversa para a seara freudiana ou kardecista. Ou quem sabe chegaríamos a Salvador Dalí e Akira Kurosawa. Mas o fato é que pouco tempo depois de ganhar minha primeira guitarra, sonhei com Slash. Nos encontramos em algum lugar por aí, batemos um longo papo, em inglês, diga-se, e ele me ensinou as manhas de Paradise City. Acordei, levantei rápido, peguei minha Jennifer nos braços e... saí tocando! A canção estava todinha lá. Desta forma aprendi a tocar Guns n’ Roses pela primeira vez.

Ao longo destes anos todos muitas outras conversas com Slash vieram em meus sonhos. É o que Sigmund Freud chamaria de “manifestação de desejos inconscientes”. Ok, faz sentido. Mas desejo inconsciente (sonho) seria tão poderoso a ponto de te ensinar a produzir algo que você não sabe ou não conhecia antes? Ei, Alan Kardec. Acho que é hora de você dar sua opinião.

Não. Antes vale dizer que o pai da psicanálise, que encarou as profundezas da mente em sua obra-prima “A Intepretação dos Sonhos”, e neste trabalho reduziu a música a um mero ativador de memórias, diversas vezes mencionou sua limitada sensibilidade musical. Mais que insensibilidade, quase um medo. Para ele, o perigo de se envolver com a música era a possibilidade de perder o controle racional que havia escolhido como seu objeto acadêmico.

Na obra “O Moisés de Michelangelo”, Freud abriu seu coração: “Posso dizer de saída que não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto obras de arte tem para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora para o artista o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte. Confesso isto a fim de me assegurar da indulgência do leitor para a tentativa que aqui me propus. Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreende-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta.”

Bom, se nem Freud consegue explicar a si próprio por que raios a música lhe emociona, quem sou eu para fazê-lo?

Um parêntesis. Por volta de 1910, o mestre da música clássica Gustav Mahler tratou de uma profunda depressão justamente com... Sigmund Freud.

Das outras vezes que sonhei com Slash não aprendi necessariamente canções que eu não conhecia. Mas em muitos outros sonhos me vi tocando músicas novas. E o processo foi o mesmo: acordar, pegar o violão (ou a guitarra) e compor. Ou melhor, tocar acordado aquilo que momentos antes tocava dormindo. No meio da madrugada ou nas primeiras horas da manhã, a música simplesmente vai fluindo pelos dedos, escorre dos sonhos para as mãos, como se já estivesse lá, pronta para ser desdobrada, revelada, ouvida. Assim compus em diferentes ocasiões. Ainda hoje me intriga. É um processo de criação instigante e interessantíssimo. Para o qual Kardec, agora sim, pode falar, tem uma teoria: “o sonho é a lembrança do que vosso espírito viu durante o sono”. Bom para você que, como eu, se lembra dos sonhos como roteiros de filme.

Kardec acredita que o espírito está livre para potencializar suas características durante os sonhos. “São o resultado da liberdade do Espírito, que se emancipa e goza, nesse momento, de mais amplas faculdades”, escreveu, em “O Livro dos Espíritos”. A propósito, noutro capítulo ele trata da sensibilidade dos espíritos à música (questão 251): “A música possui infinitos encantos para os espíritos, por terem eles muito desenvolvidas as qualidades sensitivas. Refiro-me à música celeste, que é tudo o de mais belo e delicado que pode a imaginação espiritual conceber”.

De uma forma ou de outra, o sonho é um elemento poderoso de criação artística. Keith Richards contou em sua autobiografia que o inconfundível riff de Satisfation lhe veio à mente durante o sono. Saindo um pouco dos campos da música, mas ainda no espectro dos sonhadores, o cineasta japonês Akira Kurosawa sonhava tanto e conseguia lembrar tanto deles que teve a capacidade de filmá-los. Em “Sonhos”, de 1990, ele reproduz no vídeo oito histórias reveladas pelo seu inconsciente (na explicação de Freud), sopradas ao pé do ouvido por bons espíritos (assegura Kardec), durante algumas noites de sono em diferentes momentos de sua vida. Gênio. Aliás, o mestre surrealista Salvador Dalí foi fonte farta de estudos para psicanalistas, sem deixar de atravessar uma longa fase místico-religiosa. O título de um dos seus quadros mais incríveis e famosos já diz tudo – “Sonho causado pelo voo de uma abelha um segundo antes do despertar”, de 1944. Já imaginou ter habilidade – genialidade – o suficiente para pintar o último instante daquele sonho que te faz acordar no susto? Freud e Kardec teriam muito a debater. Na biografia “Dalí – A Obra Pintada”, os autores Robert Descharmes e Gilles Néret descrevem-no como “fotógrafo das cores dos seus sonhos e fantasmas”.

Oh, só agora me dei conta. Não conversei sobre essas coisas com Slash. No próximo sonho vou perguntar pra ele o que ele acha disso tudo. Se eu lembrar, juro que lhes conto.

Ah, sim. A ideia deste texto surgiu enquanto eu dormia, num sonho que não me lembro bem.

Inscreva-se no Moozyca

Leia também
Não leia este texto, procure um livro sobre música

Não leia este texto, procure um livro sobre música

Enquanto isso, na Sala da Justiça...

Enquanto isso, na Sala da Justiça...

Pela música, dormi na rua. Quem nunca?

Pela música, dormi na rua. Quem nunca?

Expomusic 2016 leva o mundo da música para dentro e fora do Anhembi

Expomusic 2016 leva o mundo da música para dentro e fora do Anhembi

5 versões de músicas em português que te farão perder a fé na humanidade

5 versões de músicas em português que te farão perder a fé na humanidade

"A ditadura não atrapalhava o reggae, pelo menos para mim", conta Jai Mahal

"A ditadura não atrapalhava o reggae, pelo menos para mim", conta Jai Mahal

Cantora alemã Dota fala sobre sua relação com a música brasileira e o Nordeste

Cantora alemã Dota fala sobre sua relação com a música brasileira e o Nordeste

Salvador se candidata na Unesco ao título de "Cidade da Música"

Salvador se candidata na Unesco ao título de "Cidade da Música"

Duo japonês divide palco com Meninos do Morumbi e Wadaiko Sho em São Paulo

Duo japonês divide palco com Meninos do Morumbi e Wadaiko Sho em São Paulo

O cientista da vanguarda baiana

O cientista da vanguarda baiana

Sabia que o kuduro pode ter sido inspirado em Van Damme?

Sabia que o kuduro pode ter sido inspirado em Van Damme?

Dica do Réu: o som brasileiro de Sarah Vaughan

Dica do Réu: o som brasileiro de Sarah Vaughan

Inscreva-se no Moozyca

Banner Moozyca