Enquanto isso, na Sala da Justiça...

Ninguém sabia o que eles iriam fazer, mas Tchaikovsky deu as notícias: “Faça-se o som!”

Não me coloca nessa outra vez. Já cansei dessa enrascada toda. Mas, sim, o negro tinha mesmo o blues. Tudo o que eu fiz foi dobrar o tempo da batida, daí virou rock.

- Hendrix, como você acha exatamente que surgiu o rock?

- Ora, Slash. Até parece que você nunca ouviu AC/DC antes. Angus, relembre-o, por favor. Deu branco no cara.

- Lá no início, de volta a 1955, o homem não conhecia o show de rock'n'roll e todo aquele swing. O homem branco tinha o sentimento. O homem negro tinha o blues. Ninguém sabia o que eles iriam fazer, mas Tchaikovsky deu as notícias, e ele disse: “Faça-se o som!” E fez-se o som. “Faça-se a luz!”. E fez-se a luz. “Faça-se a bateria!” E fez-se a bateria. “Faça-se a guitarra!” E fez-se guitarra. “Faça-se o rock!”. E veio a ocorrer que o rock'n'roll nasceu. Por tudo quanto é lado, toda banda de rock botava pra quebrar. E o guitarrista ficou famoso. O empresário ficou rico. E em cada bar havia um superstar doido pra arrebentar. Havia quinze milhões de dedos aprendendo a tocar. E dava pra você ouvir os dedos dedilhando. E é isso o que eles tinham pra dizer: “Faça-se a luz! Som! Bateria! E Guitarra! Faça-se o rock!”

- Sim, sim... conheço essa história. Parece bem aquela eterna discussão de “Elvis Presley ou Chuck Berry? Quem é o pai da criança?”, né não, Chuck?

- Ah, Slash. Dá um tempo. Não me coloca nessa outra vez. Já cansei dessa enrascada toda. Mas, sim, o negro tinha mesmo o blues. Tudo o que eu fiz foi dobrar o tempo da batida, daí virou rock. Aí tem o lance da dancinha, do movimento, da expressão, da atitude, da linguagem corporal. Mas também era uma coisa natural. O Elvis era mais bonitinho por natureza, tinha aquela parada de rebolar e tal, fazer boquinhas pras câmeras de Ed Sullivan, tocar violão vez em quando. No meu caso era que a gente era marrento mesmo. Coisa de moleque, dos pretinho tudo lá da periferia de St Louis, saca? Além do mais eu tocava a guitarra e juntos formávamos uma coisa só. Meu corpo. Eu, a guitarra e a música éramos uma coisa só. Um não vivia sem o outro. Um escritor não escreve sem, no mínimo, papel e lápis. Pois era exatamente isso, um pouco mais até: o braço da guitarra passou a ser uma extensão de mim, daquilo que eu fazia, a continuação da minha voz, do meu fígado, dos meus pulmões, das minhas entranhas. Por isso que, quando puxamos aquele acorde, aquela dissonante, aquele grave ou agudo, os lábios se retorcem na mesma proporção, as sobrancelhas balançam como ondas, o abdômen reage. Somos o mesmo corpo. É como doer o último fio de cabelo ao pisar num prego enferrujado ou se desfazer em prazer na primeira colherada daquela torta de limão que minha avó fazia. É. Vocês aí até que entenderam bem a parada, pelo que pude acompanhar. Virou até deus da guitarra, não é Hendrix?

- Virei, não. Clapton é Deus.

- Porra, Hendrix. Não fode. Até você?!

- Hahaha, ué! Jamais esqueceremos das pichações que cobriram Londres. Ao que eu saiba, isso não aconteceu com ninguém aqui. E acho até que tinham razão. Ok, poderia ser exagero para alguns. Mas, veja. Um branquelo britânico surge do nada no começo dos anos 60, discriminação racial por toda a América. Aí esse branquelo deita a Fender nas mãos com suavidade impressionante, dominando totalmente o instrumento justo na seara dos pretos: blues, soul e R&B. Com conhecimento de causa. Pela primeira vez eu vi um branco falar (e tocar) com tanta propriedade e orgulho da música negra americana. Derrubou barreiras. Foi emocionante. Aquilo abriu muitas portas pra muita gente, cara.

- Bom, isso lá é verdade. Mas quem entrou para a história como o maior guitarrista de todos os tempos? Eu ou você? Você. Então...

- É, Hendrix. Isso você tem de admitir.

- Caralho, Slash. Só porque você é o mais novo aqui vai ficar nessa de perguntinhas? É jornalista, agora?

- Não, de boas. Mas vamos falar o certo pelo certo. Sem querer puxar o saco. Quem pegou Chuck e Clapton e elevou a coisa a outro nível? (sem ofensas, rapaziada) Quem descobriu novas possibilidades sonoras para a guitarra? Quem meteu um wah-wah com tanta maestria na Fender Stratocaster? Quem meteu-lhe distorções psicodélicas? Aliás, quem aqui teve colhões para distorcer o hino nacional americano, tido como um patrimônio intocável, derretendo-o – sem dizer uma só palavra, apenas usando a força da linguagem musical – numa sopa de gemidos, gritos e bombas? Que força! Acho que foi a primeira vez que alguém colocou de verdade a guitarra a serviço da crítica social, contra o sistema, contra um governo, pela liberdade. Atitude punk total, muito antes de inventarem o punk.

Nesse momento um velhinho entrou na sala e todos ficaram calados em reverência.

- Por acaso vocês estão falando de guitarra outra vez?! – intrometeu-se já bicando o Jack Daniel’s de Slash sem pedir permissão.

Era Lester William Polsfuss. Mais conhecido pelos mortais como Les Paul.

 

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