LPs: assim ouvíamos e descobríamos música e arte

Música é uma arte complexa, que exige mais dos seus sentidos para ser apreciada

O que hoje se convencionou dizer “vazou na net” naquela época dizia-se “tem uma demo tape rolando por aí, tá sabendo?”. E então iniciava-se uma corrida por uma intrínseca rede de contatos e favores

Houve um tempo em que a inexistência da internet e do mundo virtual fazia com que a molecada fosse muito esperta, criasse relacionamentos pessoais face a face, desenvolvesse redes de amigos amplas, cheias de informações e contatos, toma lá dá cá. Ok, não vou fazer sermão chato acerca das relações online. Afinal, você está lendo este texto por meio de uma plataforma multimídia interessantíssima. Mas é que, cá eu alisando meu branco cavanhaque, não consigo me separar de um sentimento romântico-saudosista do modo como ouvíamos e descobríamos música.

Alguns se espantam que eu ainda compro CD. “Ah, sério?! Você compra CD?! Por quê??? É só baixar!”, atiram-me, escandalizados. Sim, compro CD e folheio o encarte dezenas de vezes. Fico imaginando as caras de estarrecimento completo se pudessem me ver colocando meus LPs pra tocar na vitrola. É que eles não sabem que música não é só baixar. Música é uma arte complexa, que exige mais dos seus sentidos para ser apreciada, muito além da audição. É olfato porque capa de disco tem cheiro. Igual jornal, igual revista. Quem nunca sentiu o cheiro de um lugar, uma comida, e imediatamente é transportado para a lembrança de música que estava ouvindo numa ocasião especial da vida? Ou, ao contrário, ouve uma música e lembra do cheiro do pai, da mãe, do filho, do parceiro(a)? Se não, meu amigo, desculpe, você não tem sentimentos. É tato porque seguras com delicadeza em tuas mãos o LP (até mesmo o CD) como se fosse um instrumento novo, uma caixa de segredos cujo conteúdo merece teu zelo. Manusear é preliminar. Prenúncio do que virá. Na música também, viu “nubie”? É paladar porque a música tem sabor e harmoniza conforme cada bebida. Jazz, vinho branco. Tango, tinto. Blues, bourbon. Bach, Beethoven, Mozart, Johnny Cash, whisky. Samba, cerveja obrigatoriamente gelada. Rock, cerveja sempre, nem sempre necessariamente gelada. Suas papilas gustativas transformam-se exponencialmente influenciadas pela música. Acredite em mim. É visão porque a capa do LP estimula a imaginação e a confronta com as imagens que a música cria em sua mente. É um jogo de criação visual espetacular.

Aliás, capa de LP é um capítulo à parte dentro dessa questão da amplitude da música. Eram verdadeiras obras de arte. Um espaço importantíssimo para o trabalho de cartunistas, fotógrafos, artistas plásticos. Gostávamos tanto de capas de LPs quanto de quadros e livros. Era preciso tê-los. Quantas capas não entraram para a história da arte... Muito já se falou sobre este tema. E muito se falará, de tão inesgotável.

O que hoje se convencionou dizer “vazou na net” naquela época dizia-se “tem uma demo tape rolando por aí, tá sabendo?”. E então iniciava-se uma corrida por uma intrínseca rede de contatos e favores. Você tinha de conhecer alguém que conhecia alguém que pudesse te arrumar uma cópia em K7. Fazíamos isso na rua, frequentando a casa um do outro e depois íamos ouvir na pracinha usando o toca-fitas de alguém. Que lindo cenário de amizade e diversão, colocando na música o elemento aglutinador!

Talvez eu tenha sido privilegiado num aspecto. Minha casa era um ambiente democrático constantemente frequentado por artistas, escritores, músicos, maconheiros e toda uma sorte de moleques lá da rua que buscavam ali suspiros de liberdade em oposição aos seus pais chatos e caretas. Tinha um, o japonês, que adorava cabular aula. Diversas vezes aparecia em casa cedo pela manhã parecendo um refugiado pedindo asilo político. “Cara, posso ficar aqui até a hora do almoço? Quebra essa, vai”. Lembro que meu pai, jornalista, chegava em casa toda noite com sacolas de LPs que ele ganhava nas redações. Jabás (presentinhos, no jargão jornalístico) das gravadoras. Chegamos a ter mais de mil LPs na estante. De tudo quanto é tipo de artista. Ainda guardo o LP de uma dupla sertaneja chamada Estranho e Desconhecido.

E aí vem outro ponto diferente das relações pessoais que tinha na música o pino central: a camaradagem. Não havia comércio. Comércio era camaradagem. Bater rolo, como dizíamos. No começo dos anos 80 já tinha uma molecada fã de heavy metal. Ainda não era muito a minha. Mas eles apareciam lá em casa para ouvir as novidades que surgiam diretamente das gravadoras. Sempre tinha alguma coisa: Motorhead, Kiss, Iron Maiden, Scorpions. Uma vez eu troquei o álbum Blackout, dos Scorpions, de 1982, aquele cuja capa mostra um louco de sanatório com dois garfos enfiados nos olhos, por uma coleção completa do Forte Apache. Para quem não sabe, ou não lembra, eram bonequinhos de caubóis e índios pra você brincar de conquistar o... forte apache. Que puta negócio eu fiz! Também troquei Rock and Roll Over, do Kiss, por algum brinquedo da moda que não me lembro agora. Mas certamente me dei bem.

Felizmente ainda guardo muitos LPs daquela época. Kiss – Killers. Kiss – Creatures of the Nite. Iron Maiden – Iron Maiden. Motorhead – Iron Fist. Uma coleção inteira de Dire Straits. E por aí vai...

Tanto saudosismo me faz lembrar agora, bem à calhar, de uma frase de Aviso aos Retirantes, de Edenilton Lampião: “Arte como moeda forte”, esse é nosso lema.

Inscreva-se no Moozyca

Leia também

Pesquisadora italiana fala ao Moozyca: "música triste faz bem"

Raul Seixas que me desculpe, mas o diabo é o pai do blues

Os Tincoãs: música brasileira de volta à África

Bukowski não seria o mesmo sem a música clássica

Tom Zé é o único brasileiro a entrar no ranking da Pitchfork

Por que nos EUA não tem batucada?

“O principal elemento no meu trabalho é o ritmo”, afirma Arrigo Barnabé

Falta mulher no rock’n’roll (menos no baixo)

Inscreva-se no Moozyca